Palestra


Trecho de uma palestra onde Richard Dawkins utiliza-se das palavras de Douglas Adams para criticar o discurso religioso.

Trechos

“Dennis Hutch, magnata da indústria fonográfica. […] Dennis Hutch alcançara a posição mais alta [na empresa] quando seu fundador morrera de uma overdose letal de tijolos, que ocorrera enquanto estava sobre a influência de uma Ferrari e uma garrafa de tequila.”

Trecho extraídos de The Long Dark Tea-Time of the Soul
Douglas Adams, 1988

Curiosidades

De onde você tira inspiração para os seus livros?

Eu digo a mim mesmo que não poderei tomar outra xícara de café até que tenha tido uma nova ideia.

Entrevista

O Livro Que Me Transformou

1. Título
O Relojoeiro Cego (The Blind Watchmaker).

2. Autor
Richard Dawkins.

3. Quando o leu pela primeira vez?
Assim que foi publicado. Por volta de 1990, acredito.

4. Por que esse livro te chamou tanto a atenção?
Foi como escancarar as portas e janelas de um quarto escuro e abafado. Você percebe uma confusão de ideias parcialmente digeridas com as quais convivemos, especialmente aqueles de nós com educação para as artes. Nós “meio que” entendemos evolução, embora secretamente achemos que há algo mais do que só isso. Alguns de nós até mesmo acham que há algum “tipo de” deus, que toma conta dos pedacinhos que parecem meio improváveis. Dawkins traz uma enxurrada de luz e ar fresco, e nos mostra que há uma clareza deslumbrante na estrutura da evolução que é de tirar o fôlego quando, de repente, nos deparamos com ela. E se não a vemos, então, bem literalmente, não sabemos absolutamente nada sobre o que somos e de onde viemos.

5. Já releu o livro? Se sim, quantas vezes?
Sim, uma ou duas vezes. Mas também já  dei vários mergulhos nele.

6. O sentimento é o mesmo de quando o leu pela primeira vez?
Sim. O funcionamento da evolução corre tão contrário em relação as nossas suposições intuitivas normais sobre o mundo que há sempre um choque inédito de entendimento.

7. Você o recomenda, ou é uma paixão particular?
Recomendaria a qualquer um e a todos.

Pensamento

"Perguntar a opinião das pessoas é uma maneira muito boa de se fazer amigos. Dizer as suas opiniões a elas também pode funcionar, mas nem sempre tão bem".

Reflexões

“Por todo o caminho, desde Londres até Heathrow, sofreu com a dúvida. Não era uma pessoa supersticiosa, nem ao menos religiosa, era apenas alguém que não tinha certeza alguma se deveria mesmo pegar o avião para a Noruega. Mas começara a achar extremamente fácil acreditar que Deus, caso existisse um Deus, e caso fosse remotamente possível que qualquer ser divino que pudesse por ordem na disposição das partículas da criação do Universo também estaria interessado em direcionar o trânsito na M4, não quisesse que ela viajasse para Noruega também. Todo o problema com as passagens, encontrar um vizinho para cuidar de sua gatinha, então achar a bichana para que ela pudesse ser cuidada pelo vizinho, o vazamento repentino no telhado, o sumiço de sua carteira, a virada do tempo, a morte inesperada do vizinho, a gravidez da gata – tudo aparentava uma campanha orquestrada de obstrução que tinha começado a tomar proporções divinas.”

“Passou várias horas daquela noite em cima do telhado de sua casa, acenando o seu punho cerrado para o céu escuro e gritando “Pare!”, até que um vizinho reclamou para a polícia dizendo que não conseguia dormir. A polícia apareceu escandalosamente em um carro de patrulha e acordou o restante da vizinhança também.”

“Posso não ter ido para onde pretendia ir, mas acredito que cheguei onde precisava estar.”


“[Um mecânico] recomendara a eles um pequeno pub local onde poderia procurá-los quando tivesse completado a vistoria do Citroën. Uma vez que o Jaguar de Dirk tinha apenas avariado a lâmpada da seta direita [no acidente], e Dirk insistira que raramente virava para a direita, dirigiram-se até o pub em seu Jaguar.”

Trechos extraídos de The Long Dark Tea-Time of the Soul
Douglas Adams, 1988

Verbetes

B1


Badachonacher (s.)
Um relacionamento “on-off” que nunca se resolve.

Balemartine (s.)
Olhar que diz: “Pare de falar com essa mulher de uma vez”.

Ballycumber (s.)
Um dos seis livros que estão lidos pela metade e jogado em algum lugar do seu quarto.

Banff (adj.)
Pertencente ao, ou descritivo do, tipo de expressão facial que é impossível de se alcançar, exceto quando se tira uma foto para o passaporte, o que resulta em happas (q.v.).

Bathel (v.)
Fingir ter lido o livro que está sendo discutido quando, na verdade, você apenas assistiu a série de TV.

Baumber (s.)
Lençol com bordas de elástico que faz com que o seu colchão fique com o formato de uma banana.

Bauple (s.)
Uma pústula indeterminada que poderia ser tanto uma mancha quanto uma mordida.

Bedfont (v.)
Uma sensação aguda na boca do estômago sentida no café da manhã em um hotel ocasionada pela percepção de que, naquele exato momento, a camareira deve ter descoberto aquela mancha embaraçosa no seu lençol.

Belper (s.)
Protuberância encontrada embaixo do assento do passageiro do seu carro, ou na coxa de alguém embaixo de sua saia, causada pela goma de mascar de uma outra pessoa que você, inesperadamente, colocou sua mão em cima.

Beppu (s.)
O bater triunfante ao fechar um livro depois de ler a última página.

Bilbster (v.)
Uma baupe (q.v.) tão horrenda e enorme que você tem que cobri-la com esparadrapo e fingir que se cortou barbeando.

Bindle (v.)
Colocar moedas estrangeiras no meio do troco do cliente.

Blithbury (s.)
Olhar que uma pessoa lhe dirige que indica que ela está muito bêbada para ter entendido qualquer coisa que você a tenha dito nos últimos vinte minutos.

Bodmin (s.)
Discrepância irracional e inevitável entre a quantidade recolhida e a quantidade necessária quando um grande número de pessoas tenta pagar a conta depois de uma refeição juntas.

The Deeper Meaning of Liff
Douglas Adams & John Lloyd, 1992

N.T.: Para entender mais sobre essa fabulosa obra de Douglas Adams, leia os textos indicados abaixo. Vale ressaltar que nem todos os verbetes serão traduzidos (por enquanto) e que a escolha das palavras traduzidas não segue nenhum tipo de critério específico.

Verbetes

A


Abilene (adj.)
Descritivo do frescor agradável do lado contrário do travesseiro.

Abinger (s.)
Aquele que lava toda a louça exceto a frigideira, o ralador de queijo e a caçarola em que a calda de chocolate fora preparada.

Abruzzo (s.)
Área de chão desgastada embaixo de um balanço infantil.

Ahenny (adj.)
O modo como alguém se comporta quando examina a estante de livros de uma outra pessoa.

Ainderby Steeple (s.)
Aquele que faz uma pergunta com o aparente motivo de querer ouvir a sua resposta, no entanto interrompe sua frase inicial curvando-se na sua direção e dizendo: “E vou te contar porque lhe perguntei isso...” e então fala substancialmente pela próxima hora.

Albacete (s.)
Um pêlo único e surpreendentemente longo que cresce no meio do nada.

Alcoy (adj.)
Vontade de ser forçado a tomar mais uma bebida.

Alltami (s.)
Arte ancestral de ser capaz de equilibrar os registros de quente e frio em um chuveiro.

Ambleside (s.)
Conversa proferida por um pai ao seu filho sobre a Realidade da Vida enquanto caminham no jardim em uma tarde de domingo.

Amersham (s.)
Espirro que faz cócegas mas nunca vem. (Acredita-se que a origem venha da estação de metrô do Metropolitan Line de mesmo nome, onde os trilhos crepitam mas o trem nunca chega)

Ampus (v.)
Um machucado visível que você não consegue lembrar como conseguiu.

Ardelue (v.)
Fazer uma grande encenação de procurar em todos os seus bolsos quando da aproximação de um coletor de caridade.

Ardentinny (s.)
Aquele que esfrega as mãos juntas fervorosamente ao sentar-se em um restaurante.

Aubusson (s.)
O estilo de cabelo adotado por uma garota em ocasiões especiais que lhe dá a sensação de como ela será daqui a vinte anos.

Aynho (s.)
Diz-se do fato dos garçons nunca terem uma caneta.

The Deeper Meaning of Liff
Douglas Adams & John Lloyd, 1992

N.T.: Para entender mais sobre essa fabulosa obra de Douglas Adams, leia os textos indicados abaixo. Vale ressaltar que nem todos os verbetes serão traduzidos (por enquanto) e que a escolha das palavras traduzidas não segue nenhum tipo de critério específico.

Prefácio

Prefácios 

Prefácio para a primeira edição de 1983
Na Vida*, há várias centenas de experiências, sentimentos, situações e, até mesmo, objetos comuns que todos conhecemos e reconhecemos, mas para os quais não existe uma palavra. Por outro lado, o mundo está infestado com milhares de palavras sobressalentes que passam o tempo todo sem fazer nada além de ficarem vadiando por aí em postes de sinalização apontando para lugares. Nosso trabalho, como o vemos, é retirar essas palavras dos postes de sinalização e colocá-las nas bocas dos bebês e criancinhas e assim por diante, onde elas possam começar a ganhar o seu espaço nas conversas do dia-a-dia e fazer uma contribuição mais positiva para a sociedade.
Douglas Adams, John Lloyd, Malibu, 1982.
*E, com certeza em Liff.

Prefácio para a reimpressão de 1984
O que dissemos no primeiro prefácio meio que prevalece, acredito.
Douglas Adams, Nova Iorque, 1983.

Prefácio para a segunda reimpressão de 1984
Não consigo pensar em nada mais para adicionar ao prefácio anterior. Aqui é bacana, no entanto.     
                                                                    Douglas Adams, Seychelles, 1984.

É mesmo?                                                                       John Lloyd, Birmingham, 1984.

Prefácio para a reimpressão de 1986
Havia algo que eu ia mencionar neste prefácio, mas é uma daquelas coisas que não se consegue lembrar quando se senta para escrevê-las.
Douglas Adams, Madagascar, 1985.

Prefácio para a reimpressão de 1987
Nada. Me veio a mente brevemente enquanto estava no Brasil, mas eu não tinha uma caneta.
Douglas Adams, Hong Kong, 1986.

Prefácio para a reimpressão de 1988
Você recebeu o prefácio que enviei por fax da Nova Zelândia?
Douglas Adams, Zaïre, 1988.

Prefácio para a reimpressão de 1989
Não.                                                                                   John Lloyd, Lambeth, 1989.

Prefácio para a segunda reimpressão de 1989
Que pena. Estava muito bom. Não consigo lembrar como era agora.
Douglas Adams, Beijing, 1989.

Prefácio para a terceira reimpressão de 1989
Nós citamos o fato de que todas essas palavras são de fato nome de lugares verdadeiros?
Douglas Adams, Ilhas Maurício, 1989.

Prefácio para a quarta reimpressão de 1989
Sim.                                                                                    John Lloyd, Lambeth, 1989.

Prefácio para a primeira edição do The Deeper Meaning Of Liff de 1990
Bem, não há muito que precise ser adicionado então, não é mesmo?
Douglas Adams, John Lloyd, Sydney, 1990.

Prefácio encontrado em The Deeper Meaning Of Liff
Douglas Adams & John Lloyd, 1992

N.T.: Para saber mais sobre esta obra de Douglas Adams, acesse o link abaixo:

Reflexões

“Deu uma folheada nos dois livros que acabara de apanhar. Um deles, o mais antigo, era um relato das assombrações de Borley Rectory, a casa mais mal assombrada da Inglaterra. A lombada do livro já estava bem esfarrapada, e as chapas fotográficas já estavam tão cinzas e embaçadas que eram praticamente indistinguíveis. Uma foto que ele imaginara ter sido um momento de muita sorte (ou montada) de uma aparição fantasmagórica acabou por se tratar, quando ele examinou a legenda, de um retrato do próprio autor”.


“Gordon Way jazia no chão, incerto sobre o que fazer. Estava morto.”


–  Quem é...?
– Você está falando com Svlad, vulgarmente conhecido como ‘Dirk’ Cjelli, atualmente negociando sob a alcunha de Gently por motivos que seriam desnecessários, no momento, de serem repetidos. Desejo-lhe uma boa noite. Se quiser saber mais, estarei no Pizza Express na Upper Street em dez minutos. Traga dinheiro.
–  Dirk? – exclamou Richard. – Você... Está tentando me subornar?
– Não, seu besta, é para as pizzas. – Houve um estalido. Dirk Gently havia desligado o telefone.


E a senhora Roberts? Como ela está? O pé ainda está dando trabalho a ela?
– Não desde que ela o amputou, mas obrigado por perguntar, senhor. Entre nós, eu teria ficado mais feliz se tivessem amputado ela e deixado o pé. Já tinha até um pequeno espaço reservado para ele em cima da lareira, mas sabe como é, temos que aceitar as coisas como elas são.


– Perceba, essas coisas, – disse a Richard que estava desconcertado, – são fáceis. Serrar uma mulher ao meio é fácil. Serra uma mulher ao meio e depois juntar os pedaços novamente é menos fácil, mas dá para ser feito se praticado. O truque que você descreveu com o vaso de duzentos anos e o saleiro da faculdade é – fez uma pausa para dar mais ênfase – completa e totalmente inexplicável.


Trechos extraídos de Dirk Gently's Holistic Detective Agency
Douglas Adams, 1987

Entrevista

Entrevista para o The Onion A.V. Club - Parte II

O. E tem o filme também. Ouvi rumores de que um filme do Guia do Mochileiro vem sendo especulado há décadas.

D.A. Bem, sim. Embora a coisa tenha começado a esquentar, houve duas fontes de rumores anteriores. Uma foi quando, há cerca de quinze anos, vendi os direitos para Ivan Reitman, que não era tão conhecido na época. A coisa realmente não funcionou, porque uma vez que havíamos começado o trabalho, Ivan e eu não nos encontrávamos pessoalmente. Na verdade, o que aconteceu é que ele não havia lido o livro antes de comprá-los. Ele tinha meramente visto o número de vendas. Acredito realmente que não era a praia dele, então ele quis fazer algo bem diferente. Por fim, concordamos em discordar e seguimos nossos respectivos caminhos, e nessa época os direitos tinham passado dele para a Columbia, e ele foi fazer um filme chamado Os Caça-Fantasmas. Dá para imaginar como fiquei irritado com tudo isso. O filme ficou parado lá nas mãos da Columbia por muitos anos. Acredito que Ivan Reitman na época pediu para alguém escrever um roteiro baseado nele que é, na minha opinião, o pior roteiro que já li. Infelizmente, tem meu nome nele e dos outros escritores, no entanto não contribui com uma vírgula se quer. Recentemente descobri que aquele roteiro está repousando na cidade dos roteiros, ou seja lá onde for, há muito tempo e que todos acreditam que eu o escrevi e que sou, conseqüentemente, um terrível roteirista. O que é bem angustiante para mim. Então, alguns anos atrás, fui apresentado a alguém que se tornaria um grande amigo meu, Michael Nesmith, que tem feito um monte de coisas diferentes em sua carreira. Além de ser um produtor de filmes, ele fora primeiramente um The Monkees, o que é meio estranho quando você chega a conhecê-lo, porque ele é um camarada tão sério, profundo, quieto, mas com um toque de prazer meio endiabrado. Então a proposta dele era que fizéssemos uma parceria. Ele seria o produtor e eu faria os roteiros e assim por diante. Nos divertimos muito trabalhando nisso por um bom tempo, mas acredito que Hollywood naquele momento viu a coisa como algo velho. Eles já passaram por muita coisa. E basicamente, o que me disseram várias vezes era que essencialmente, “Ficção-científica com comédia não vai funcionar como um filme. E aqui está o porque não: Se pudesse funcionar, alguém já o teria feito”.

O. Essa lógica me parece meio furada.

D.A. Então, o ano passado, aconteceu que Homens de Preto foi lançado e, de repente, alguém já havia feito aquilo. E Homens de Preto é... Como posso dizer de forma delicada? Existem elementos nele que acho um pouco familiar, devo dizer. Sendo assim, do dia pra noite, um filme de ficção científica de comédia que ia muita na mesma linha que o Guia se tornou um dos filmes de maior sucesso já feito. Com isso a perspectiva das coisas mudou um pouco. De uma hora para outra as pessoas meio que o queriam. O projeto com o Michael... No final das contas, não conseguimos fazer a coisa decolar, então desfizemos a parceria, mas como bons amigos e que ainda somos. Eu apenas espero que haja outros projetos no futuro em que ele e eu possamos trabalhar juntos, porque gosto muito dele e nos damos muito bem juntos. Além disso, quando mais tempo eu conseguir passar em Santa Fé, melhor. Bem, agora o filme está com a Disney ou, para ser mais específico, com a Caravan, que é uma das maiores empresas de produção independente, mas que está meio atrelada a Disney. É bastante frustrante não tê-lo realizado nesses últimos quinze anos, no entanto me sinto extremamente apoiado pelo fato de que alguém pode fazer um filme muito, muito, muito melhor agora do que há quinze anos. Isso em termos técnicos, de como será a aparência e como funcionará. Obviamente a qualidade verdadeira do filme está no enredo, na atuação, direção e assim por diante, e estas habilidades não emergiram nem afundaram nesses últimos quinze anos. Mas pelo menos em uma área substancial, em como trabalhar a aparência, melhorou significativamente.

O. E Joy Roach [Austin Powers] o está dirigindo, certo?

D.A. Isso mesmo. Ele é um cara muito interessante. Tenho passado um bom tempo conversando com ele. O segredo da coisa toda, sob vários aspectos, foi que quando conheci Joy Roach me identifiquei muito com ele, e pensei: “Eis um cara muito inteligente e brilhante”. Ele não é apenas um cara brilhante e inteligente, mas vou tentar mensurar o quão brilhante e inteligente ele é: ele quer que eu trabalhe bem de perto no filme dele. O que é algo que sempre enobrece um escritor para um diretor. Na verdade, quando estava criando a série de rádio original, ninguém jamais imaginara fazer o que fiz, afinal de contas eu tinha acabado de escrevê-la, mas eu meio que me inseri em todo o processo de produção. O produtor/diretor ficou meio surpreso com isso, mas no final levou tudo numa boa. Então tive muito a ver com o modo como o programa se desenvolveu e é certamente isso que Jay quer que eu faça nesse filme. Então pude sentir, “Ótimo, eis alguém com quem posso fechar negócio”. Obviamente estou dizendo isso no início de um processo que vai durar dois anos, então quem sabe o que vai acontecer? Tudo o que posso dizer é que nesse exato momento as coisas estão caminhando da melhor forma possível. Sendo assim me sinto muito otimista e animado com tudo isso.

O. Já se passaram por volta de vinte anos desde o programa de rádio, certo?

D.A. Bem, é quase exatamente vinte anos. Completará vinte anos no próximo mês.

O. Qual o segredo da longevidade do Guia do Mochileiro das Galáxias?

D.A. Eu não sei. Tudo o que sei é que ralei muito, me preocupei muito com ele e acredito que tornei as coisas muito difíceis para mim ao fazê-lo. E se existisse uma maneira fácil de fazer alguma coisa, eu acharia um caminho muito mais complicado de fazê-lo. E eu respeito o fato de que a quantidade de pessoas que gostam do Guia não está relacionado com a quantidade de trabalho que depositei nele. Isto é uma coisa meio simplista de se dizer, mas é o melhor que tenho agora.

O. A ideia é que o filme aborde o primeiro livro?

D.A. Sim. É engraçado, pois venho pesquisando na web o que as pessoas têm dito. Já vi, “Ele vai inserir os cinco livros no filme”. As pessoas realmente não entendem a maneira como um livro se projeta em um filme. Alguém disse, e achei bastante preciso, que o melhor material de origem para um filme é um conto. O que significa efetivamente que sim, vai ser o primeiro livro. Tendo dito isso, sempre que me sento e faço uma outra versão do Guia, ela é extremamente contraditória a qualquer versão anterior. O melhor que posso dizer sobre o filme é que será especificamente contraditório ao primeiro livro.

O. Qual a versão do Guia que te deixa mais satisfeito?

D.A. Com certeza não é a da TV. Dependendo do meu humor, vou oscilar entre a do rádio ou a do livro, que são as duas outras versões que me sobram, então tem que ser uma delas, não é? Sinto algo diferente por cada uma delas. Por um lado, a série de rádio foi onde tudo começou, onde a coisa cresceu, onde a semente brotou. Além disso, é onde senti que eu e as outras pessoas trabalhando no Guia – o produtor, o engenheiro de som e assim por diante e, é claro, os atores – havíamos criado algo que realmente parecia inovador na época. Ou melhor, deu a impressão que éramos totalmente loucos na época. Lembro-me de sentar no estúdio subterrâneo ensaiando o som de uma baleia se espatifando no chão a quase quinhentos quilômetros por hora por horas a fio, apenas tentando achar maneiras de ajustar o som. Depois de horas debruçado nisso, dia após dia, você realmente começa a duvidar da sua sanidade. E claro, não se tem a mínima ideia se alguém vai ouvir isso. Mas sabe de uma coisa, havia uma sensação real de que ninguém jamais tinha feito algo parecido antes, e isso era ótimo, porém há uma grande custo que vem junto com isso. Por outro lado, o encanto dos livros para mim é que aquilo ali sou eu. O grande apelo de um livro para qualquer escritor é que aquilo é simplesmente ele. É isso aí. Não há mais ninguém envolvido. Isso não é bem verdade, claro, porque a coisa se desenvolveu a partir de uma série de rádio em primeiro lugar, e tem o “feeling” de todas as pessoas que já contribuíram, de alguma maneira ou de outra, com o espetáculo de rádio de onde a coisa toda surgiu. Mas, no entanto, há um sentimento do tipo “este é um trabalho totalmente meu” em um livro e aprecio a maneira como a leitura flui. Sinto que a coisa flui com leveza, como se tivesse sido fácil escreve-lo, mas eu sei o quanto foi difícil de alcançá-lo.

O. Você às vezes se cansa do Guia do Mochileiro das Galáxias?

D.A. Houve uma época em que fiquei totalmente enjoado dele, e não queria nunca mais ouvir nada a respeito dele novamente, e chegava perto de gritar com quem viesse comentar sobre ele comigo. Mas desde então, eu viajei um pouco e fiz outras coisas. Escrevi os livros do Dirk Gently. Das coisas que fiz, a que mais gosto aconteceu há dez anos: viajei pelo mundo com um zoólogo amigo meu, e procurei por várias espécies de animais raros e em extinção, e escrevi um livro a respeito disso chamado Last Chance to See, que é o meu preferido. O Guia agora é algo do passado do qual gosto muito; foi ótimo, sensacional, e ele foi muito bom para mim. Tive uma conversa há pouco tempo com Pete Townshend do The Who, e acho que naquela hora eu disse, “Oh Deus, espero não ser lembrado apenas como a pessoa que escreveu O Guia do Mochileiro das Galáxias”. E ele meio que me reprimiu por isso. Disse, “Olhe, tenho a mesma sensação por Tommy, e por muito tempo pensei assim. A questão é: quando se tem algo do tipo na sua história, ela abre um monte de portas. Lhe permite fazer um monte de outras coisas. As pessoas se lembram disso. É algo de que se deve ser grato”. E achei aquilo bastante sensato.

O. Você deixou o Dirk Gently de lado?

D.A. Comecei a escrever outro livro do Dirk Gently e me perdi. Por alguma razão não conseguia fazê-lo fluir, então tive que deixá-lo de lado. Não sabia o que fazer com aquilo. Dei uma olhada no material novamente depois de mais ou menos um ano e de repente concluí, “Na verdade, a razão é que as ideias e os personagens não combinam. Tentei seguir uma linha de ideias incorretas, e essas ideias se encaixariam muito melhor em um livro do Guia, mas eu não quero escrever outro livro do Guia por enquanto”. Então eu meio que as coloquei de lado. E talvez um dia eu escreva um outro livro do Guia, porque há uma quantidade muito grande de material só esperando para adentrá-lo. Mas voltando ao Dirk Gently, eu meio que deixei o Dirk de lado, sério mesmo. Houve uma montagem de um aluno da Oxford sobre o Dirk Gently, Holistic Detective Agency há dois ou três meses, então fui lá para assisti-la. E é um enredo extremamente complicado... Parte da complexidade está lá para disfarçar o fato de que o enredo não funciona bem... Foi divertido assisti-lo no palco, pois repentinamente comecei a pensar sobre isso novamente, e pensar, “Bem, eles fizeram isso bem, mas o que deveriam ter feito era isso, e deveriam ter feito aquilo”. Sabe, começa a surgir um monte de ideia na sua mente. O que também foi interessante para mim foi que enquanto eu estava sentado lá sendo bem crítico em relação à montagem, fiquei embasbacado por ver o quanto o público estava gostando. Foi uma situação bastante peculiar. De repente pensei, “Adoraria ver isso acontecer em um filme, porque agora posso ver, tendo pensado a respeito disso recentemente dentro desse contexto, que tipo de filme ele se tornaria, e seria grandioso”. Então talvez, uma vez que o filme do Guia tenha subido aos palcos onde eu possa apontar a minha atenção para outras coisas também, isto é a próxima coisa que gostaria de fazer. E com este filme a caminho, espero que mais portas se abram no que diz respeito a fazer filmes. Adoraria fazer filmes, mas eis um homem dizendo isso inocentemente que nunca fez um.

Entrevista conduzida por
Keith Phipps, 1998.

Reflexões

“O Monge Elétrico era um aparelho que fora desenvolvido para se economizar esforços, assim como uma máquina de lavar louças ou um vídeo cassete. As maquinas de lavar louças costumavam lavar aquelas louças tediosas para você, evitando assim que você se entediasse lavando-as; os vídeos cassetes assistiam a tediosos programas de televisão por você, evitando assim que você se entediasse em assisti-los; os Monges Elétricos acreditavam nas coisas por você, evitando assim que você tivesse que cumprir uma tarefa que estava se tornando cada vez mais onerosa: a de acreditar em tudo o que o mundo esperava que você acreditasse”.


“O que eu quero dizer é que se você realmente quiser entender algo, a melhor maneira é tentar explicá-la para uma outra pessoa. Isso força você a solucioná-la dentro da sua cabeça. E quanto mais estúpido ou devagar for o seu aluno, mais você terá que fragmentar as ideias em pedaços cada vez menores... O professor geralmente aprende mais do que o aluno. Não é verdade?”


 – Você não faz ideia sobre o que eu ia falar?
 – Não.
 – Oh. Bem, eu acredito que deveria ficar feliz com isso. Se todos soubessem exatamente sobre o que eu ia falar, então não haveria razão para dizer, né?


Trechos extraídos de Dirk Gently's Holistic Detective Agency
Douglas Adams, 1987.

Prefácio

Last Chance to See

Este livro relata uma série de viagens na qual Mark Carwardine e eu embarcamos em busca de alguns dos animais mais raros do mundo e a beira da extinção, e um ou dois que não correm tanto perigo, mas que logo estarão encrencados se não nos preocuparmos. A viagem para Madagascar ocorreu em 1985, e as demais foram realizadas dentro de um período de cerca de dez meses, entre 1988 e 1989.
O fotógrafo Alain Le Garsmeur foi junto conosco a Madagascar, porém não conseguimos persuadi-lo a abandonar a melhor parte de um ano inteiro para se juntar a nós novamente nas demais viagens, então Mark e eu tiramos todas as fotos que estão nesse livro. Aquelas que ficaram relativamente boas foram o resultado dos conselhos, ajuda e entusiasmo de Alain. As que não ficaram tão boas quanto deveriam, teriam ficado melhores caso ele estivesse lá para tirá-las.
Todas as viagens, exceto aquela para Madagascar, foram gravadas para a Rádio BBC. A produtora da série era Gaynor Shutte. Ela viera conosco para a Indonésia e Nova Zelândia a fim de nos gravar nos campos e ter certeza de que sabíamos basicamente o que estávamos fazendo. Chris Muir fora responsável pelas gravações do áudio em Zaire e na China, e Stephen Faux fizera as gravações nas Ilhas Maurício.
Mark fora o responsável pelas partes difíceis. Ele realizara toda a preparação, organização e pesquisa envolvida na montagem das viagens, e também me ensinou grande parte da singela quantidade que agora sei sobre zoologia, ecologia, e do trabalho de conservação. Tudo o que eu tinha que fazer era comparecer com minhas malas e tentar lembrar o que acontecera por tempo suficiente depois de tudo e escrevê-la.

Douglas Adams, 1990

Entrevista


Entrevista para o The Onion A.V. Club - Parte I

Acho que a ideia de arte assassina a criatividade.
D.N.A

THE ONION. Tem muita coisa acontecendo na sua vida. Sobre o que você gostaria de falar primeiro?

DOUGLAS ADAMS. Acredito que existam duas coisas primordiais. Uma delas é que estamos quase acabando esse negócio no qual venho trabalhando, acredito que por volta de dois anos já, chamado Starship Titanic, que é um CD-ROM. Será lançado dentro de poucos meses. A outra coisa é que acabei de aceitar em vender os direitos de O Guia do Mochileiro para a Disney. Então acredito que nos próximos dois anos estarei trabalhando nisso. Estarei trabalhando nesse filme.

O. Conte-nos sobre o Starship Titanic.

D.A. É um CD-ROM, e a coisa mais importante é que ele começou como tal. As pessoas queriam que eu fizesse um CD-ROM sobre O Guia, então pensei, “De jeito nenhum”. Não queria apenas reverter engenharia em uma outra coisa a partir de um livro que eu escrevera. Acho a mídia digital interessante o suficiente por si só para ser capaz de originar algo novo. Porque, falando sério, na hora em que você tem uma ideia, o segundo pensamento que percorre a sua mente logo depois é: “O que é isso? É um livro, um filme, é isso, é aquilo, é um conto, é um cereal matinal?” É sério. A partir daquele momento, sua decisão sobre que tipo de negócio aquilo é determina como ele vai se desenvolver. Então algo será muito, muito diferente se for desenvolvido como um CD-ROM do que se tivesse sido desenvolvido como um livro. Nesse momento, pra ser sincero, estou contando uma mentirinha, pois a ideia como tal, na forma de um parágrafo único, aparecera de verdade em um dos livros do Guia, acho que em Vida, o Universo e Tudo Mais. A razão é que toda vez que eu meio que emperrava na construção do enredo do Guia, eu sempre inventava alguns outros enredos curtos e os dava para o Guia narrar. Então, eis uma pequena ideia que estava repousando ali, e muitas pessoas me disseram, “Oh, você deveria transformar isso num livro”. Parecia ser uma ideia boa demais, e eu geralmente resisto a elas. Mas na verdade descobri que havia uma razão muito boa para eu não estar interessado em fazer de Starship Titanic um livro, pois era essencialmente uma história sobre uma coisa. Pensei nessa ideia e não tinha nenhuma pessoa envolvida nela, e apenas se pode contar histórias sobre pessoas. Então mais tarde, enquanto pensava, “Beleza, nesse momento quero criar um CD-ROM, porque quero justificar o fato de que passo todo o meu tempo sentado brincando com computadores”, eu queria na verdade era transformá-lo em um trabalho próprio de gente grande. Fiquei pensando, o que seria algo bom? Repentinamente percebi que o problema de transformar Starship Titanic em um livro – que era sobre uma coisa, sobre um lugar, sobre um navio – havia de repente se transformado em sua vantagem. Quando se está fazendo um CD-ROM, o que se vai eventualmente criar é um lugar, um ambiente.

O. E o usuário se torna o personagem.

D.A. Exatamente. Uma vez que o lugar começa a se desenvolver, você então coloca os personagens nele. Mas não é algo sobre os personagens, mas sobre o navio. O que eu queria fazer era algo... Bem, ou era muito antiquado ou então muito radical, dependendo da maneira como se encarava aquilo; queria construir uma máquina de conversação dentro do jogo. Há muitos anos, fiz um jogo baseado no Guia do Mochileiro com uma empresa chamada Infocom, que era uma excelente empresa. Eles estavam criando jogos cultos, inteligentes e perspicazes baseados em textos. Sabe, há vários milhares de anos de cultura humana dizendo que se pode fazer muita coisa com um texto, e colocar o elemento extra da interatividade deve apenas acrescentar às possibilidades. Transforma-se o computador em um narrador e o jogador no público, como nos velhos tempos quando o narrador literalmente respondia ao público, ao invés de apenas ter o público respondendo ao narrador. Eu me diverti muito, na verdade, trabalhando naquilo. Simplesmente adorei construir aquelas conversas virtuais entre o jogador e a máquina. Sendo assim, achei que seria incrível tentar estender aquilo e fazer ainda mais coisas em um jogo de gráficos modernos. Gostaria de ver se alguém conseguiria pegar aquela tecnologia de conversação antiga e fazer com que personagens falassem de verdade. Coloca-los em um ambiente e ver aonde aquilo iria chegar. Então começamos a enfrentar o problema de ser capaz de falar com os personagens, afinal tudo o que se faz envolvendo a linguagem simplesmente se transforma em um grande problema. Pra começo de história, queríamos fazer isso por meio do que seria um texto para voz, que lhe dá a vantagem de que se tem muito mais flexibilidade em construir orações instantaneamente. Por outro lado, todos os personagens pareciam noruegueses com concussão cerebral, o que percebi como uma desvantagem. Então, por fim, percebemos que teríamos que realizar falas pré-gravadas. Aí pensei, “Isso é terrível, pois apenas se tem um número limitado de respostas. Simplesmente vai ser... não sei se gosto disso”. Sendo assim, a conclusão a qual chegamos para resolver o problema, ou gradualmente resolver o problema, foi que a quantidade de falas pré-gravadas apenas aumentou, e aumentou, e aumentou, e aumentou. Acabamos de realizar mais duas horas de sessão de gravação essa manhã. Temos agora algo por volta de dezesseis horas de pequenos trechos de conversação: pequenas frases, orações, meias-orações, e todas as coisas que a máquina coloca junto instantaneamente em resposta ao que você digita. Por muito tempo não estava funcionando muito bem, mas agora, nas últimas duas ou três semanas, começou a dar certo, e começou a ficar assustador. As pessoas vêm e dizem, “Cara, não consigo imaginar como isso vai funcionar. Que tal se você perguntar isso ao jogo?” E eles o fazem, e os queixos caem. É incrível. Pessoas vêm e passam horas apenas sentadas, trancafiadas em conversas com esses personagens. Adianto-me em dizer que essas dezesseis horas de diálogo foram escritas por uma pequena equipe nossa. Eu escrevi grande parte dos diálogos, outras pessoas escreveram algumas partes também, e todos nós trabalhamos juntos para uni-las. Foi muito marcante quando começou a funcionar. De repente tínhamos um mundo habitado. Robôs muito estranhos e danificados rastejando por todos os lados, todos com um conjunto amplo de opiniões, atitudes, ideias e histórias malucas, e que sabem sobre coisas totalmente inesperadas. E você pode conversar com todos eles.

O. Não te preocupa o fato de que depois de todo esse trabalho, as pessoas possam não tratá-lo com a importância que dariam se fosse, digamos, um filme ou um livro? Que não vão vê-lo como uma forma de arte?

D.A. Espero que isso aconteça. Me preocupa muito essa ideia de arte. Desde que me formei em literatura inglesa, tento evitar a ideia de se fazer isso. Acho que a ideia de arte assassina a criatividade. Esta foi uma das razões de eu realmente querer fazer um CD-ROM: ninguém vai levá-lo muito a sério e, conseqüentemente, pode-se passar desapercebido com um monte de coisas boas. É engraçada a freqüência com que isso acontece. Acho que quando os primeiros romances foram criados, a maioria deles era uma espécie de pornografia; aparentemente, uma grande parte da mídia começara como pornografia e crescera a partir daí. Me apresso em dizer que este não é um CD-ROM pornográfico. Antes de 1962, todos achavam que a música pop era um tipo de... Ninguém jamais, nem remotamente, teria chamado aquilo de arte; então, eis que aparece alguém, e é tão incrivelmente criativo naquilo, simplesmente porque ama aquilo de paixão e acredita que é a maior diversão que se pode ter, e dentro de poucos anos se tem Sgt. Pepper’s e outros mais; de repente todo mundo está chamado aquilo de arte. Na minha opinião, a mídia alcança sua fase mais interessante antes de qualquer um pensar em chamá-la de arte, quando a maioria das pessoas ainda pensa que é apenas um monte de porcaria.

O. Mas digamos daqui a vinte anos, você gostaria de ser reconhecido como um dos pioneiros a utilizar o CD-ROM como arte?

D.A. Apenas gostaria que um monte de pessoas o tivesse comprado. Em primeiro lugar pela razão mais óbvia, e em segundo é que se for popular, se as pessoas realmente gostarem e se divertirem com ele, você sente que fez um bom trabalho. E se algumas pessoas quiserem se juntar e disserem, “Oh, isso é arte”, que seja então. Não me preocupo muito com isso, mas acredito que é para outras pessoas decidirem sobre o feito. Não é o que se deve almejar fazer. Não há nada pior do que você sentar para escrever um romance e dizer, “Bem, vou fazer algo de valor artístico elevado”. É engraçado. Li uma coisa outro dia por absoluta curiosidade: Thunderball, que é um dos livros do James Bond que adoraria ter lido quando tinha, não sei bem, uns quatorze anos, apenas folheando-o em busca das partes em que ele coloca sua mão esquerda sobre os seios dela e diz, “Oh meu Deus, que excitante”. Mas aí pensei, bem, James Bond se tornou um baita de um ícone de nossa cultura pop dos últimos quarenta anos, seria interessante ver como ele era de verdade. E o que me levou a fazer isso, além do fato de que por acaso achei uma cópia jogada por perto, foi lendo alguém falando sobre Ian Fleming e dizendo que ele almejara não ser literário, mas literato, o que é uma diferença muito, muito grande e crucial. Então pensei, bem, deixe-me ver se ele conseguiu fazer isso. É interessante, porque foi na verdade muito bem escrito como uma criação artística. Ele sabia como usar o idioma, como fazer as coisas funcionarem, e escreveu bem. Mas obviamente ninguém o chamaria de literatura. Todavia, acredito que se consiga a maior parte dos trabalhos mais interessantes feitos em áreas onde as pessoas não acham que estão fazendo arte, mas estão meramente praticando um ofício, e trabalhando como bons artesãos. Ser letrado como um escritor é um bom ofício, é saber o seu trabalho, é saber como usar suas ferramentas propriamente e não danificar as ferramentas conforme as utiliza. Descubro que quando leio romances literários – sabe, com “L” maiúsculo – acho que uma grande parcela não faz sentido. Se eu quero conhecer algo interessante sobre a maneira como os seres humanos funcionam, como eles se relacionam e como se comportam, encontrarei uma grande quantidade de novelistas policiais femininas que fazem isso de maneira muito melhor, como Ruth Rendell por exemplo. Se eu quiser ler algo que literalmente me dê algo sério e fundamental para pensar a respeito, sobre a condição humana, se preferir, ou sobre o que estamos fazendo aqui, ou o que está se passando, então é melhor que eu leia algo de um cientista da ciência da vida, como Richard Dawkins. Percebo que a agenda dos problemas importantes da vida mudou-se dos romancistas para os escritores de ciências porque eles conhecem mais. Geralmente fico com um pé atrás em relação a qualquer coisa que acha que é arte enquanto está sendo criado. Agora quando a questão é o CD-ROM, apenas queria fazer o melhor possível, e me divertir o máximo enquanto o criava. Acho que ficou muito bom. Sempre tem pedaços que se fica preocupado por não estar tão perfeito, mas pode-se ficar preocupado com algo para sempre. A coisa está boa pra caramba.

Introdução


Introdução a Roteiros de Rádio


Aprecio bastante essas conversinhas no início dos livros. Na verdade, isso é uma grande mentira. O que acontece de fato é que você está batalhando para tentar terminar, ou ao menos começar, um livro que você prometeu entregar há sete meses e faxes começam a chegar perguntando se você poderia talvez escrever outra breve e curta introdução para um livro no qual você lembra claramente ter escrito “FIM” por volta de 1981. Não vai, promete o fax, levar mais do que dois minutinhos. Com toda certeza não vai levar dois minutinhos. Na verdade, demora por volta de treze horas e você perde outro jantar e a sua esposa não vai querer falar com você, e o livro fica tão atrasado que você começa a perder os acampamentos de férias no Pirineus inteiros e a sua esposa não vai mais conversar com você, principalmente porque o acampamento de férias fora uma ideia sua e não dela, e ela só iria porque você queria e agora ela tem que ir e fazer tudo sozinha quando você sabe perfeitamente bem que ela odeia acampar. (E eu também, a propósito. Estou inventando um pouco).
E então mais faxes chegam exigindo mais introduções, desta vez para edições antológicas de livros para os quais já escrevi introduções individuais anteriormente. Depois de um tempo descubro que já escrevi tantas introduções que alguém coleta todas elas e as compilam em um livro e me pedem para escrever uma introdução para ele. Então perco outro jantar e também uma viagem para mergulhar nos Açores e descubro que a razão da minha esposa não estar mais falando comigo é porque ela está agora casada com outra pessoa. (Estou inventando isso também, pelo menos até onde sei).
Na época em que eu conseguia ir a festas, em outras palavras, na época em que tinha escrito apenas alguns livros e o negócio de escrever introduções para eles ainda viria a se tornar uma atividade de período integral, eu costumava economizar muito do meu tempo quando descobria que dois de meus amigos não se conheciam apenas dizendo a eles:
‒ Este é o Pedro e esta é a Paula, por que vocês não se apresentam?
Isso geralmente funcionava fantasticamente bem e antes que viesse a ter conhecimento, Pedro e Paula já eram um casal feliz tirando férias juntos indo esquiar nos Alpes franceses com a minha esposa e o segundo marido dela.
Então. Caro leitor. Esta é a reedição de aniversário dos roteiros de rádio do Guia do Mochileiro das Galáxias. Por que vocês não se apresentam?
Gostei desse nosso papinho.

Introdução a The Original Hitchhicker Scripts,
Edição de décimo aniversário.
(Harmony Books, maio de 1995)

Palestra


Trecho de um palestra extemporânea realizada em Digital Biota 2, Cambridge.
Setembro de 1998.

Assistir no YouTube:  http://youtu.be/qaSWDNutQJA

Palestra



Trecho do livro Last Chance to See.
De Douglas Adams: Parrots, the Universe and Everything.
Maio de 2001.

Assistir no YouTube: http://youtu.be/1bdjptHqsKw

Receita


Chá

Um ou dois americanos me perguntaram por que os ingleses gostam tanto de chá, já que para eles nunca pareceu ser uma bebida muito boa. Para entender, deve-se prepará-lo de maneira adequada.
Há um princípio muito simples para o preparo do chá, e é o seguinte – para se conseguir o sabor peculiar do chá, a água precisa estar fervENDO (não fervIDA) quando ela atingir as folhas do chá. Se estiver apenas quente, então o chá ficará insípido. É por isso que nós ingleses temos esses rituais peculiares, como aquecer o bule primeiro (para que a água fervente não esfrie rapidamente conforme é despejada no bule). E é por isso que o hábito americano de se trazer à mesa uma xícara de chá, um saquinho de chá, e um recipiente de água quente é simplesmente a forma perfeita de se fazer uma xícara de chá aguada, pálida e rala, que ninguém em sã consciência ficaria com vontade de beber. Os americanos ficam todos abismados com o fato de os ingleses fazerem tanto caso por conta de uma xícara chá porque a maioria dos americanos NUNCA BEBEU UMA BOA XÍCARA DE CHÁ. É por isso que eles não entendem. Na verdade, a essência da questão é que a maior parte dos ingleses não sabe mais como fazer chá também, e a maioria das pessoas bebem café instantâneo barato ao invés disso, o que é uma pena, e dá aos americanos a impressão de que os ingleses basicamente não têm ideia do que são estimulantes quentes.
Então o melhor conselho que posso oferecer a um americano recém-chegado à Inglaterra é o seguinte: Vá ao Marks and Spencer e compre um pacote de chá Earl Grey. Volte para onde você está hospedado e ferva uma chaleira de água. Enquanto ela está esquentando, abra o pacote que está selado e dê uma bela fungada. Cuidado – você pode se sentir meio tonto, mas isso é na verdade perfeitamente legal. Quando a água da chaleira tiver fervido, despeje um pouco em um bule, rodopie-o, e destampe-o novamente. Coloque dois (ou três, dependendo do tamanho do recipiente) saquinhos de chá dentro do bule. (Se eu realmente estivesse tentando levá-los ao caminho da retidão, diria para usarem folhas soltas ao invés de saquinhos, mas vamos seguir apenas passos fáceis.) Leve a chaleira para ferver de novo, e então despeje a água fervendo o mais rápido que puder no bule. Deixe repousar por dois ou três minutos, e então despeje em uma xícara. Algumas pessoas dirão que não se deve tomar leite com Earl Grey, mas apenas colocar uma fatia de limão. Danem-se. Gosto com leite. Se acha que vai gostar com leite, então é provavelmente melhor colocar um pouco de leite no fundo da xícara antes de despejar o chá.* Se despejar o leite dentro da xícara de chá quente, vai escaldá-lo. Se acha que vai preferir com uma fatia de limão, então, bem, acrescente uma fatia de limão.
Beba. Depois de algum tempo você começará a achar que aquele lugar para o qual veio talvez não seja tão estranho e maluco afinal de contas.

12 de maio de 1999

*Isto é socialmente incorreto. A maneira socialmente correta de se despejar o chá é colocando o leite depois do chá. Tradicionalmente, estar correto socialmente não tem nada a ver com razão, lógica, ou física. Na verdade, na Inglaterra é geralmente considerado socialmente incorreto saber das coisas ou pensar nelas. É importante ter isso em mente quando fizer uma visita.

Crônica


Maggie e Trudie

Não estou, devo dizer logo de uma vez, envolvido em nenhum relacionamento formal com um cachorro. Não dou de comer a um cachorro, nem abrigo, não procuro canis para um quando vou viajar,  tampouco tiro piolho, nem mesmo providencio para que alguns de seus órgãos internos sejam removidos quando eles me aborrecem. Em resumo, não tenho um cachorro.
Por outro lado, tenho um relacionamento meio dissimulado, ilícito com um cachorro, ou melhor, duas cachorras. Por conseguinte, acho que sei um pouco como é ser uma amante.
As cachorras não moram na casa vizinha. Elas nem mesmo moram na mesma – bem, eu ia dizer rua e ia destrinchar aos poucos, mas vamos direto ao assunto. Elas moram em Santa Fé, Novo México, que é um baita dum lugar para um cachorro, na verdade para qualquer um, morar. Se você nunca visitou ou passou um tempo em Santa Fé, Novo México, então permita-me dizer o seguinte: você é um completo idiota. Eu mesmo era um completo idiota há até mais ou menos um ano quando uma combinação de circunstâncias, as quais não vou me preocupar em explicar, me levaram a pegar a casa de alguém emprestada bem no deserto ao norte de Santa Fé onde fui para escrever um roteiro. Para lhes dar uma ideia do tipo de lugar que é Santa Fé, eu poderia falar a vontade sobre o deserto, a altitude, a luz e as jóias de prata e turquesa, mas a melhor maneira é apenas mencionar um sinal de trânsito na auto-estrada para quem vem de Albuquerque. Ele afirma, em letras grandes, VENTOS TEMPESTUOSOS, e em letras menores, PODEM ACONTECER.
Eu nunca conheci os meus vizinhos. Eles moravam há mais ou menos um quilômetro de distância no topo da duna seguinte, mas assim que comecei a sair para minhas caminhadas matinais, uma corridinha, um passeio suave, conheci as suas cachorras. Elas ficaram instantaneamente e delirantemente felizes em me ver que imaginei que elas deviam pensar que já havíamos nos encontrado em uma vida anterior (Shirley Maclaine morava nas redondezas e elas devem ter adquirido todo os tipos de ideias estranhas só por estarem perto dela).
Seus nomes eram Maggie e Trudie. Trudie era uma cachorra de aparência excepcionalmente boba, um poodle francês preto e grande que se movia exatamente como se fora animado por Walt Disney: um tipo de saltitar que era enfatizado por suas orelhas grandes e desajeitadas na extremidade frontal e um rabo curto e atarracado com um pouco de trabalho topiário na extremidade. Seu pêlo consistia de um emaranhado de cachos negros bem enrolados, que se uniam ao efeito Disney de ser, fazendo parecer com que ela fosse completamente desprovida de partes pudendas. A maneira de indicar, toda manhã, que estava delirantemente feliz em me ver era fazendo algo que eu sempre pensei que fosse chamado “exibicionismo”, mas que na verdade era chamado “saltitar”. (Acabei de descobrir o meu erro, e vou ter que repetir grandes partes da minha vida em minha mente para ver em que tipo de confusão posso ter me envolvido ou causado.) “Saltitar” é pular para cima com suas quatro patas simultaneamente. Um conselho: não morra até ter visto um poodle preto e grande saltitando na neve.
A maneira da Maggie indicar, toda manhã, que estava delirantemente feliz em me ver era mordendo Trudie no pescoço. Também era a maneira dela indicar que estava delirantemente animada com a possibilidade de sair para passear, de demonstrar que estava passeando e gostando muito, de mostrar que queria ficar em casa, era também a maneira dela indicar que queria ficar fora de casa. Morder Trudie no pescoço repetidamente e de forma brincalhona era, em resumo, sua maneira de viver.
Maggie era uma cachorra bonita. Ela não era um poodle, e na verdade o tipo de raça de cachorro que ela era estava insistentemente na ponta da minha língua. Não sou muito bom com raças de cachorro, mas Maggie era uma das mais clássicas, óbvias: algo como uma espécie de beagle grande, vagamente parecida com um retriever, lustrosa, preta e marrom. Como eles são chamados? Labradores? Spaniels? Elkhounds? Samoiedas? Perguntei ao meu amigo Michael, um produtor de filmes, uma vez que senti que o conhecia bem o suficiente para admitir que não conseguia resolver o problema do tipo de raça de cachorro que a Maggie era, apesar do fato de ser tão óbvio.
– A Maggie – ele me disse com seu sotaque texano arrastado, sério e vagaroso, – é uma vira-lata.
Então, toda manhã partíamos os três: eu, o escritor inglês grandão, Trudie, a poodle e Maggie, a vira-lata. Eu corria, troteava e andava pelo caminho amplo e sujo que atravessava as dunas vermelhas e secas, Trudie saltitando brincalhona, por aqui e por ali, orelhas abanando, e Maggie rolando alegremente, mordendo o seu pescoço. Trudie era de extrema boa índole e há muito sofria por conta disso, mas ocasionalmente ela, de repente, ficava de saco cheio. Nesse momento ela executava uma repentina pirueta no ar, pousava exatamente em pé encarando Maggie e lhe dava um olhar extremamente penetrante, com o qual Maggie subitamente sentava-se e começava a morder gentilmente sua própria pata traseira direita como se estivesse de saco cheio da Trudie de qualquer maneira mesmo.
Então elas começavam tudo novamente e saíam correndo, rolando e dando cambalhotas, caçando e mordendo, por todas as dunas, pelas gramas baixas e vegetação rasteira, e então ocasionalmente, de modo repentino e inexplicável, paravam como se tivessem ambas, simultaneamente, ficado sem movimentos. Elas então fitavam o vazio de forma embaraçosa por um tempo antes de começarem tudo novamente.
E qual era o meu papel nisso tudo? Bem, nenhum na verdade. Elas me ignoravam completamente por todo os vinte ou trinta minutos seguintes. O que era perfeitamente normal, claro, eu não me importava. Mas isso me deixou intrigado, porque toda manhã bem cedo elas vinham latindo e arranhando as portas e janelas da minha casa até que eu me levantasse e as levasse para passear. Se algo perturbasse esse ritual diário, caso eu tivesse de dirigir até a cidade, ou tivesse uma reunião, ou viajasse para a Inglaterra, ou algo assim, elas ficavam completamente devastadas e simplesmente não sabiam o que fazer. Apesar do fato de sempre me ignorarem totalmente quando íamos para nossos passeios juntos, elas simplesmente não conseguiam ir passear sem mim. Isso se revelou uma tendência filosófica profunda nessas cachorras que não eram minhas, pois elas tinham concluído que eu tinha que estar lá para que elas pudessem me ignorar devidamente. Não se pode ignorar alguém que não está lá, porque não é isso que “ignorar” significa.
Maiores profundidades de seus pensamentos foram revelados quando a namorada de Michael, Victoria, me disse que uma vez, quando fora me visitar, ela tentara jogar uma bola para que Maggie e Trudie fossem pegar. As cachorras se sentaram e assistiram paralisadas conforme a bola subia no céu, caía e finalmente quicava pelo chão até parar. Ela disse que a mensagem que ela havia captado delas era: “Nós não fazemos isso. Nós passeamos com escritores”.
O que era verdade. Elas passeavam comigo o dia todo, todos os dias. Mas, exatamente como os escritores, cachorros que passeiam com escritores não gostam nada de escrever. Então elas ficavam rodeando os meus pés o dia inteiro e empurrando meu cotovelo para fora do lugar enquanto eu estava digitando para que elas pudessem descansar os seus queixos no meu colo, e olhavam fixamente e pesarosamente para mim na esperança de que eu entendesse a razão e saísse para passear e, dessa forma, elas poderiam me ignorar adequadamente.
E então, à noite, elas se mandavam para suas casas verdadeiras para serem alimentadas, beberem água e irem para cama dormir. O que para mim parecia um acordo agradável, pois eu tinha todo o prazer da companhia delas, que era considerável, sem ter qualquer responsabilidade por elas. E continou sendo um acordo agradável até o dia em que Maggie apareceu toda contente cedo pela manhã pronta e ansiosa para me ignorar sozinha. Sem a Trudie. Trudie não estava com ela. Fiquei desnorteado. Não sabia o que tinha acontecido com a Trudie e não tinha como descobrir, afinal ela não era minha. Teria ela sido atropelada por um caminhão? Estaria ela deitada em algum lugar, sangrando na beira da estrada? Maggie parecia inquieta e preocupada. Ela deveria saber onde a Trudie estava, pensei, e o que tinha acontecido com ela. Era melhor segui-la, como à Lassie. Coloquei os meus sapatos e me apressei. Andamos por quilômetros, percorendo todo o deserto procurando por Trudie, seguindo os caminhos mais sinuosos. De repente percebi que Maggie não estava procurando por Trudie coisa nenhuma, ela estava apenas me ignorando, um estratégia que eu estava complicando ao tentar segui-la o tempo todo ao invés de apenas seguir a minha rota normal de caminhada matutina. Então, por fim, retornei pra casa e Maggie sentou-se aos meus pés e se entediou. Não havia nada que eu pudesse fazer, ninguém para quem eu pudesse ligar, porque a Trudie não pertencia a mim. Tudo o que eu podia fazer, como uma amante, era me sentar e me preocupar em silêncio. Fiquei sem apetite. Depois que a Maggie foi embora para casa aquela noite, dormi muito mal.
E pela manhã elas estavam de volta. As duas. Apenas algo terrível tinha acontecido. Trudie tinha sido tosada. A maior parte de seu pêlo fora aparado para apenas uns dois milímetros de altura, com alguns tufos topiários na sua cabeça, orelhas e rabo. Fiquei indignado. Ela estava ridícula. Saímos para passear e eu fiquei envergonhado, de verdade. Ela não estaria com essa aparência se fosse minha cachorra.
Alguns dias depois tive que voltar para a Inglaterra. Tentei explicar isso às cachorras, prepará-las, mas elas estavam em estado de negação. De manhã eu saí, elas me viram colocar as malas na traseira da caminhonete e mantiveram distância, estavam tremendamente interessadas em um outro cachorro ao invés disso. Realmente me ignorando. Voei para casa me sentindo estranho.
Seis semanas depois, voltei para trabalhar em um segundo rascunho. Não era apenas chamar e as cachorras apareceriam. Eu tinha que dar voltas no quintal dos fundos, de maneira totalmente óbvia e fazendo todos os tipos de barulhos agudos como aqueles que apenas os cachorros estão habituados a perceber. De repente, elas captaram a mensagem e correram através do deserto coberto de neve para me ver (era meados de Janeiro então). Assim que chegaram, se atiravam repetidas vezes nas paredes de alegria, e então não havia muito mais o que pudéssemos fazer a não ser sair para uma ignorada saudável e cintilante na neve. Trudie saltitava, Maggie a mordia no pescoço, e eu andava. E três semanas mais tarde fui embora novamente. Voltarei de novo para vê-las em algum momento deste ano, mas percebo que sou um Outro Ser Humano. Cedo ou tarde terei que me comprometer com um cachorro que seja meu.

Animal Passions (ed. Alan Coren; Robson
Books; Setembro de 1994).

Crônica

Meu Nariz


Minha mãe tem um nariz comprido e meu pai um nariz largo, o meu é a combinação de ambos. É grande. A única pessoa que conheci com um nariz consideravelmente maior do que o meu foi um professor do ensino médio, que também tinha olhos minúsculos, era praticamente sem queixo e ridiculamente magro. Lembrava o cruzamento de um flamingo e um instrumento agrícola antiquado e andava meio sem firmeza quando batia um vento contrário. Ele também se escondia bastante.
Eu queria me esconder também. Quando garoto, fui caçoado sem piedade alguma a respeito do meu nariz por anos até que um dia, por acaso, avistei meu perfil em um par de espelhos paralelos e tive que admitir que ele era, na verdade, bem engraçado. A partir daquele momento, as pessoas pararam de me importunar em relação ao meu nariz, e ao invés começaram a me provocar sem dó alguma por conta de eu dizer coisas como “na verdade”, algo que nunca deu uma trégua sequer até os dias de hoje.
Uma das características mais curiosas sobre o meu nariz é que ele não permite a entrada de ar algum. Algo difícil de entender ou até mesmo acreditar. Este problema nos leva de volta há muito tempo quando eu era um garotinho morando na casa da minha avó. Minha avó era a representante local do RSPCA*, o que significava que a casa estava sempre cheia de cachorros e gatos seriamente machucados, e até mesmo os menos comuns como texugos, furões, ou pombos.
Alguns estavam feridos fisicamente, outros psicologicamente, mas o efeito que eles provocaram em mim foi danificar seriamente minha capacidade de concentração. Por causa do ar espesso de pele de animal e poeira, meu nariz ficava inflamado e escorrendo ininterruptamente, e a cada quinze segundos eu espirrava. Qualquer pensamento que eu não conseguisse explorar, desenvolver, ou chegar a alguma conclusão lógica dentro de quinze segundos seria então forçosamente expelido da minha cabeça, junto com grande quantidade de muco.
Há aqueles que dizem que tendo a pensar e escrever em frases curtas, e se há alguma verdade nessa crítica, então foi quase certamente enquanto morava com minha avó que o hábito se desenvolvera.
Eu escapei da casa da minha avó indo para o internato, onde pela primeira vez na minha vida consegui respirar. Essa abençoada liberdade recém descoberta perdurou por boas duas semanas, até que tive de aprender a jogar rugby. Por volta dos primeiros cinco minutos da primeira partida que joguei, consegui quebrar o nariz no meu próprio joelho, o que embora tenha sido um feito claramente extraordinário, teve o mesmo efeito em mim que aquelas sublevações geológicas tiveram em civilizações inteiras nos romances de Rider Haggard – isto efetivamente me isolou do mundo lá fora para sempre.
Vários especialistas em otorrinolaringologia, em épocas diferentes, embarcaram em grandes expedições espeleológicas em minhas vias nasais, mas a maioria voltou perplexa. Aqueles que não retornaram perplexos, simplesmente não retornaram, e são, conseqüentemente, agora parte do problema ao invés da solução.
A única coisa que me deixou tentado a provar cocaína era o horrendo aviso de que a coisa corroia o seu septo. Seu eu achasse que a cocaína poderia na verdade achar um caminho pelo meu septo, eu alegremente enfiaria baldes de cocaína no nariz e deixaria que ela corroesse o quanto quisesse. Fui dissuadido, entretanto, pelas observações de amigos que literalmente enfiaram cocaína aos baldes nas narinas e que têm capacidade de concentração ainda menores que as minhas.
Então, agora estou mais conformado com o fato de que meu nariz é decorativo ao invés de funcional. Como o Telescópio Espacial Hubble, ele representa uma incrível proeza da engenharia, mas não serve para nada, exceto talvez para causar algumas risadas fáceis.

Esquire, Verão de 1991

N.T.: The Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals – Principal órgão do Reino Unido de proteção aos animais.

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